terça-feira, 18 de outubro de 2016




Incêndio na floresta

Era uma tarde como qualquer outra, com o mesmo sol tórrido de verão que assola tudo que não está à sombra nas regiões equatoriais. A bicharada cumpria suas tarefas cotidianas, como a busca incessante por alimento. Vivia-se para manter-se vivo, nada mais. Um dia sucedia outro dia e um ano sucedia outro ano, sem um influenciar nos acontecimentos do outro. No presente não se recordava do passado e o futuro não influenciava as ações do presente. A natureza vivia em perfeita harmonia. O altruísmo era um sentimento compartilhado por todos. Quando faltava algo para alguém, bastava pedir ao vizinho: “Tem milho aí?”. Sim, os animais falavam.
Nesse curso sereno, a vida seguia sem muitos problemas, até que um dia tudo mudaria. Um simples e pontual acontecimento para um mundo tão estável, um grande passo para o eterno caos; uma mudança inestimável na vida daqueles animais tão acostumados ao mundo como ele era. E a raiz de tudo: a população humana começava a prosperar e, com ela, a destruição e o esgotamento dos recursos. Ações tipicamente humanas começavam a se tornar comuns e, dentre elas, uma mudou o rumo de nossa narrativa.
Uma faísca de fogo, alimentada pelo sol escaldante, começava a se alastrar e a consumir o mato seco. O fogo é fraco de primeiro, mas pega força; pega força muito facilmente, muito rapidamente. De apenas mato seco, ele passa a queimar qualquer coisa que cruze seu caminho ou fique estático no meio dele. A destruição é visível por todos os lados e o céu se escurece com a negra fumaça. E essa foi a realidade daquele momento. Um momento no presente que, pela primeira vez na história daquele remoto mundo, influenciaria todo o futuro. Um pandemônio tomava conta daquela paisagem outrora tão pacata. Tudo saía do lugar em desespero. A bicharada corria feito louca para tentar se salvar. A passarada, observadora como é, acompanhava tudo de perto, sem saber qual seria o desfecho daquela barafunda.
            O primeiro que viu o gatilho da tragédia ser puxado e deu o alarme foi o bem-te-vi: “Vi, bem te vi, bem, bem te vi”. O humano, amedrontado por ter sido descoberto, saiu de fininho, tentando passar despercebido aos olhos do restante da passarada. Mas os bichos são muito espertos para serem enganados. Tão logo a primeira ave deu o alarme, toda a passarada já estava avisada. Maria-te-viu ainda advertiu e zombou: “Te viu, te viu”. Foi aí que o japacanim, soldado bem renomado, chegou com a sirene ligada, acompanhado do sargento e da polícia-inglesa: “Uíuíuíuíuíuíuíuí”. Então, completamente aterrorizado, o humano fugiu espavorido e quase morreu do coração quando o inhambu saiu com estrondo em voo desesperado, o que provocou uma crise de riso na risadinha. Guaracava-cinzenta chegou a perder o fôlego.
            Telepáticos e psicopatas urubus desciam em voo ruidoso para sondar as oportunidades. Queriam que o incêndio durasse muito, embora não pudessem desejá-lo verbalmente. Apenas se comunicavam telepaticamente com toda a sorte de rapina que os céus podiam enviar para aquele mórbido ambiente. Essas aves más (dependendo do ponto de vista) enxergavam tudo diferente das outras espécies: onde todos os outros viam caos e destruição, elas viam uma grande churrasqueira ardendo e suculentos pedaços de picanha sendo assados. Banquete abundante para abundantes e aterrorizantes silhuetas, que chegavam dançando de roda. Vinham vestidos com negras túnicas da morte. Tão negras quanto as aves, suas sombras deslizavam por sobre a paisagem, tornando o clima ainda mais fúnebre.
            Foi nesse acontecimento que surgiu o peru, ave negra e pomposa – até então esse magnífico modelo de ave ainda não tinha passado nem na mente do mais renomado contador de histórias. Devido ao grande trânsito de carniceiros no céu e à falta de uma tecnologia apurada para estabelecer rotas, aconteceram vários acidentes aéreos que causaram ferimentos e fraturas em diversos indivíduos. Alguns, ao quebrar as asas e não terem recurso médico para curar as fraturas, não podiam mais voar e passaram a dançar de roda no chão. Afinal, a única diferença mais perceptível entre urubu e peru é essa: urubu dança de roda no ar, peru dança de roda no chão.
            Os maiores rapinantes ironicamente salvavam filhotinhos indefesos e levavam para o conforto do ninho, a fim de jantarem juntos. Eram os salva-vidas da ocasião; bem preparados para o serviço, diga-se de passagem. Alguns, mais piedosos, chegaram mesmo a se especializar em alvos mais lerdos, como as preguiças.
            Claro que o bombeiro tinha que ser acionado. Esse era o curiango que, por preguiça intrínseca, apenas disse sonolento: “Amanhã eu vou, amanhã eu vou”. O urutau ainda perguntou preocupado: “Foi, foi, foi, foi, foi?”. O curiango só repetiu: “Amanhã eu vou”. Repentinamente e milagrosamente, o céu se escureceu e, após algum tempo, a chuva caiu leve, depois forte e, finalmente, o fogo estava extinto. Provavelmente o tietê-de-coroa e o pararu-espelho foram extintos juntos. Foi aí que a rolinha-fogo-apagou começou a comemorar: Fogo pagô! Fogo pagô! (sim, era mineira).
            Abra parênteses. O tietê-de-coroa não tem esse nome por causa do Rio Tietê. Ele era tão feio e com cara de velho que todo mundo o chamava de tio ET. Você já viu um tietê com as penas escovadinhas? Pois é. Ele tem tanta cara de velho que a gente só acha o danado no museu. Feche parênteses.
            Como em toda boa família sempre existe um traidor, nessa história não foi diferente. No caso das aves, foi a pomba-bota-fogo que torceu pelo time dos urubus. Essa, amiga dos humanos, incentivou o homem a colocar fogo na mata novamente: “Bota fogo! Bota fogo!”. Bem, não se sabe ao certo o que passara em sua mente de passarinho (se é que pomba pode ser chamada de passarinho), mas ela disse isso. É claro que isso irritou grandemente a rolinha-fogo-apagou e causou muita intriga entre as duas parentas. Ficaram se respondendo e disputando: uma dando a boa nova e a outra implicando com incentivos ao humano. Essa briga toda levou a rolinha-fogo-apagou a abandonar a vida na mata e se aventurar em campo aberto. Seriema, quando soube da história, soltou altas gargalhadas, e até hoje é possível ouvir as gargalhadas dela nos campos.
Caos, pilhéria, inimizades, tudo causado por um aparentemente simples acontecimento, provocado pelos humanos. Mas uma revelação, a mais importante e intrigante delas, está por vir: a fumaça tóxica afetou os animais, fazendo-os perder a fala. Hoje em dia, ouve-se os pássaros por toda parte, mas só se ouve falar aqueles que já tinham decorado a ladainha. Os outros vivem a proferir estrofes sem sentido por aí. Esse foi o fim dramático da comunicação verbal entre os animais e também entre animais e humanos, além do início de várias intrigas que hoje mantêm muitos animais apartados: uns na mata, outros no campo. Aqui está a história das coisas; a história do mundo; a história de tudo. Uma história reveladora que só agora foi contada e que mudará o rumo do pensamento das pessoas. A verdade sempre é mais simples do que se imagina. A ciência nos mostra apenas uma versão enfadonha, incômoda e inconveniente das coisas esdrúxulas que acontecem.

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