quarta-feira, 7 de dezembro de 2016





Ruínas linguísticas

Não pretendo escrever utilizando verbetes incógnitos para tornar laboriosa e ímproba a compreensão; isso seria afrontar o bom senso com armas contundentes e déspotas. Aliás, o que seria de um escrito ilegível? Tornaria o alfabetizado analfabeto. Por isso uso vocabulário modesto, tangível e axiomático, acessível a todos os públicos. Por mais intransitivos que sejam os verbos, complemento-os. Por mais perifrásticos que sejam os períodos, torno-os ainda mais circunlóquios. Por mais abstratas que sejam minhas ideias, concretizo-as. Nada de obscurecer a essência do que é dito com a obumbração de estereotipia que protege textos acadêmicos como baluartes erguidos a pedras, à maneira de penedos e calhaus salvaguardando a orla marítima da bravura das matas interiores. Obstinação sórdida!
Almejo discorrer aqui acerca da restrição lexical que a última flor do Lácio vem sofrendo, mais febrilmente, nos últimos tempos. E que léxico vasto e ancho a nossa língua ostenta! Tão opíparo quanto úberes amojados de reses a ponto de partejar. Colossal em abundância como o é em salpicos a plumagem variegada de um polhastro pedrês.
Afinal, quem tem mais amplo vocabulário do que os capiaus? Pouco cognoscível para os citadinos, talvez, visto que esses últimos sofrem com mais frequência e pujança do mal lúbrico, por vezes convincente - para eles, não para mim -, de adaptar seu vocabulário a linguagens estereotipadas que buscam, em lugar de profusão e magnificência, a austeridade e a parcimônia da redundância semântica.
Ah, por onde andas, galhardíssima mesóclise? Por que abandonaste nossa construção sintática e te deixaste comutar por despojadas próclises, que não trazem nenhum sentido poético aos excertos modernos? Eras a posição mais egrégia e deslumbrante dentre todas as que um pronome pessoal átono do caso oblíquo podia ocupar. Modernidade! A maldita modernidade causando a derrocada e o depauperamento da linguagem textual. Dar-se-ia o caso de que voltarias a ensoberbecer nosso idioma alhures no tempo?
Recuso-me à adesão inconveniente e inaceitável a esse esfacelamento idiomático. Prefiro conservar meu cunho caipira a cambiar minha fala e escrita para algo menos feérico e mais malparecido, algo que eu alvitro ser torpe e abjeto. Deixo transparecer a primordialidade de se utilizar metáforas sempre e incessantemente. Metáforas são adagas afiadíssimas capazes de tocar qualquer leitor. Têm aspectos tão retos quanto cornos de agnos, encaracolados sobre si mesmos. Espira esplêndida!
Não que eu não goste de pronomes de tratamento - que, apesar de se referirem à segunda pessoa, conjugam-se em terceira -, mas “você” é reles, ordinário e nauseabundo. Deveria ele sentir a metanoia de nos subtrair a noção de conjugação em segunda pessoa; e ele não sente a mínima compunção de nos omitir a capacidade de discernir entre os pronomes possessivos “teu” e “seu”.
Prolixos textos acadêmicos que usam mais palavras do que substância! Na verdade, na sociedade em que vivemos, o dom de orador deve ser sabiamente albergado por todos para que, mesmo não se tendo o que dizer, tem-se o que dizer; mesmo não se dizendo nada, diz-se muita coisa; mesmo não se apresentando argumentos convincentes, convence-se; mesmo não se sendo um gênio, parece-o. Pro lixo tudo que é prolixo! Insensatez de escritores gauche!
Se for teu gáudio ouvir-me a utilizar essa linguagem trampolinada que usas, estejas certo de que não to darei. Folgo-me, em vez disso, com o vetusto e provecto linguajar dos antigos poetas. Aliás, pobres dos poetas que desejarem ter avultada e magnânima carreira em tempos tão difíceis linguisticamente. Parece qualquer blague, buscando espargir a pilhéria e a laracha, mas é a verdade incondicional e impertinente em que vivemos em tempos tão modernos: em lugar de ganho, perda; em lugar de locupletamento, retrocesso a ruínas.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016



Vida no solo

Ora, quem não se maravilha ao contemplar o voo acrobático dos taperuçus atravessando o véu das mais esplêndidas cascatas e apanhando insetos no ar com suprema maestria? Ou a altivez do voo da águia, que parte da penha para deslizar suavemente sobre as termais? Afinal, o voo é o diferencial admirável das aves.
Quanto a mim, deleito-me mais em ouvir o grave som da voz do jaó e o crepitar das folhas sob os leves e sorrateiros passos de sua carreira nas partes umbrosas da floresta. Passos em fileirinha sobre o manto de folhas secas que recobre o solo. Uma cobertura que anuncia a passagem de animais furtivos: passos quase imperceptíveis das tovacas, passos saltitantes das cutias, passos sólidos das antas, passos traiçoeiras das onças.
Ora, o tempo, que apaga d’alma a mágoa e seca d’orvalho a água, também envelhece as folhas já saturadas do enfadonho processo da fotossíntese. Ora, o vento, que balança e poliniza as flores e carreia seus doces odores, também derruba as folhas já cambaleantes.
Ah o tempo! O tempo tudo muda. O tempo derruba árvores centenárias e faz crescer verdejante tapete de musgos sobre elas. O tempo e o orvalho. Chapéus de cogumelos brotam para ornamentar a paisagem. Sobre esse palco canta o tovacuçu e a galinha do mato: um com voz de barítono, outro com trinado soprano; a pariri faz o compasso com bombardão gravíssimo.
Aos pés dos outeiros mais altos, as soqueiras de samambaias parecem ornamentar a base dos picos, que se elevam como bastião fortalecido por rochas reluzentes à luz do sol. É aí que andam furtivamente como camundongos os negros tapaculos. Com voz de anfíbio, o macuquinho-perereca se oculta à vista.
Paisagem visual e sonora. Viajo com o pensamento por essa malha imagem-som como Einstein um dia viajou pela malha espaço-tempo: ele cientista, eu poeta. Perco-me na narrativa. Que tem Einstein com isso? Escrever é tornar explícito o que a mente esconde. Para um poeta, mantê-lo escondido incomoda. Um macuco apita do poleiro.