segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Ideias desconexas

Na várzea há lama, caro leitor, e essa lama abriga vermes invisíveis. Vê-me um verme, senhora, pede o cachaceiro no balcão do bar. Ou o maçarico no banco de areia úmida. O sereno rega flores e vultos são formas da escuridão. Não faço o que quero, mas quero o que faço, diz o sábio. E o néscio zomba. Asas são para pássaros e trombas para elefantes. Dias belos nascem cândidos e morrem rubros. À noite, só a alvura do luar e o brilho ávido e dançante das estrelas pintam o negro lábaro. O dia se resume a cores.
Não vejo isso como uma mescla de histórias de sentidos diversos, mas como pensamentos parturientes sendo dispensados e dispersados como vesículas cheias do complexo golgiense. Contextos com textos bem contextualizados e testamentos bem testados contestando na testa do leitor.
Escrevo e me maravilho com o potencial volátil das ideias, que deixam constantemente de ser ideias para se incorporarem ao mundo físico, perdendo, claro, um pouco do conteúdo existente no mundo das ideias. Mas, de que vale conteúdo? Contemos simplesmente um conto que conte algo incontável. E contestemos o que é incontestável e litiguemos o que é litigável nos escritos não cômicos que para nada servem. Pensamentos voam como belas gaivotas. O crepúsculo é o limite, porque prende nosso pensamento e nos faz escrever poesias crepusculares, quando a alva sobe alvejante sobre o negro petulante.
Sinto ideias indo e vindo, confusas e perdidas, pouco antes de encontrarem um rumo, que pode ser um buraco de minhoca no infinito universo. Elas se trombam e se entrelaçam como peixes-bruxa nos abissais dos oceanos. Às vezes se contorcem sobre si mesmas. No final, apontam como setas atiradas por habilidosas mãos guerreiras e cravam-se em uma verdade incondicional e mortal, como que vociferando para o futuro e além da infinitude cósmica.
Às vezes se tornam ideias desfavoráveis à compreensão do contexto literário de obras que poderiam alcançar reputação magnânima, mas, dessarte, parecem perder o sentido literário. Mas, será o favorável tão importante? Para começar, o favor pode ser algo desfavorável, apesar de sermos frequentemente favorecidos por ele. De que vale ser favorável pois? De que vale ser um átomo no espaço se não podemos sê-lo fora dele? De que vale a existência se o espaço não tem fim nem forma? Somos amorfos, inodoros, incolores e insípidos. Somos seres magníficos, mas nada que se compare às substâncias das quais somos formados. No final, nos tornamos em nada. Que coisa esplendorosa!
Talvez eu seja culpado da confusão mental do leitor. E tomo a culpa como qualquer alavanca para erguer o planeta, de forma que a água transborde através das bordas inexistentes. Durante a chuva, acha-se abrigo sob as árvores. Após a estiagem, ali é o único lugar onde a chuva permanece.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Andorinhões, aves de extremos

Um bando errático de pássaros anegrados maculam e riscam o azul penetrante do lábaro de verão. São os mais habilidosos voadores que os céus são orgulhosos de apresentar. Têm no ar o seu leito e no vento a sua vereda. Seu rosto está constantemente arrefecido pela brisa fresca das alturas e suas asas cortam a atmosfera como lâminas afiadas, sustentando-os acima dos outeiros com a leveza de algodão e a aerodinâmica de mísseis.
Em sua eterna rota, rabiscando com destreza a abóbada celeste, esses pássaros capturam constantemente o plâncton aéreo, com a maestria de cardumes de arenques nas aparatosas águas de branda temperatura dos mares temperados. Comem animalejos diversos que viajam nas asas do vento, como insetos alados e mesmo pequenas aranhas, incríveis viajantes de paraquedas.
Algumas espécies realizam migrações intercontinentais, cruzando a bruma do mar alto e voando dia e noite sem parar. Essas avezinhas não precisam de descanso. Podem voar até duas estações sem pousar. Dormem deitados ao vento, sendo acariciados pelos tufões das tempestades. Quando o céu se enegrece e pesadas nuvens descem ameaçadoramente, liberando energia, luz e ruído, lá estão as aves do temporal, deleitando-se com o mau tempo e furando os pés de vento prazerosamente.
São aves de extremos. Têm prazer nas adversidades. Não só as águas da chuva lhes trazem regozijo. Por trás do véu das cascatas, dependurados em cachos nos rochedos verticais molhados constantemente pelo eterno sereno, lá estão eles, com plumagem cinzenta, de aparência grotesca e obsoleta. No crepúsculo, vê-se o voo acrobático e magistral dos enormes bandos contra o rubor do sol poente, seguindo a melodia do turbilhão das cataratas. Cortam com aventuroso adejo a cortina das perigosas cachoeiras como se apenas atravessassem os umbrais de suas confortáveis moradas. Os pés são capazes de se empoleirar nas pedras verticais e incapazes de fazê-lo em galhos finos e fios como os outros pássaros. São mesmo aves insólitas.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Flor afortunada

Apenas passeava pelos campos floridos que sumiam de vista no horizonte, chegando até onde, paulatinamente, o verde salpicado das mais variadas cores se encontrava com o azul celeste, que àquele momento estava imaculado e com quase perfeita uniformidade. Apenas tons esmaecidos de lilás se formavam onde os olhos já não podiam distinguir bem as figuras; e um aro mais claro se fazia em volta do sol, que parecia afastar aquele azul, talvez por inveja. Era manhã, mas o sol já brilhava alto e já carregara o frio e a bruma.
            A valsa dos galhardíssimos ramalhetes de flores bulidos pela leve brisa confundia e hipnotizava o olhar, estorvando as percepções de cores: aquilo tudo parecia uma mescla de tons, como num desvario dos sentidos. Sentei-me em uma pedra que se destoava da paisagem para observar aquele espetáculo estonteante sem sentir vertigens.
            Suave sinfonia formada pelo canto dos sabiás e o murmúrio de um riacho que serpenteava por entre as pedras polidas era carregada no vento como melodia melíflua e agora roubava-me, a seu bel-prazer, o sentido de audição. Estavam afinadíssimos e se expressavam conjuntamente como uma orquestra: o som de um preenchia as pausas do outro.
            Uma voz tênue e aprazível entrou no ambiente sonoro como se a composição chegasse ao coro. Só distingui bem a origem do som quando, ao longe, vi uma bela figura que, sem perceber minha presença, colhia flores com um cesto pendendo-se do braço e cantarolava alegremente. As flores pareciam se curvar e reunir em volta da orla daquele longo e simples vestido.
            Aquela figura se desavia completamente daquela paisagem, apesar de ter a formosura das flores que compunham boa parte do que os olhos podiam apalpar em seu vislumbre. Tal discrepância me fez recuperar os sentidos que há muito já não me faziam perceber o ambiente em volta com clareza. Escondi-me para não comprometer as atividades da moça.
            A paisagem que agora estava diante de mim se assemelhava mais ao crepúsculo assistido das lindas praias tropicais. Todo o azul do mar e do céu, que vistos dessa perspectiva se mesclam formando um único azul, pareciam estar condensados naquele par de olhos, que se mostravam desconfiados como os das gazelas. Faltavam a eles as ondas dóceis e serenas do mar calmo. Mas essas estavam nas lindas mechas que lhe desciam pelo rosto, delimitando os desenhos mais singelos que já havia visto, passavam pelos ombros e varriam os ramos mais altos.
            O enrubescer do sol poente estava sobre seus pômulos inocentes e o doirado da espuma de arrebentação formava-se em seus loiros cabelos. Então me chamou a atenção uma flor vermelha que ornava as mechas cor d’oiro e se mostrava maior e mais esplendorosa que todas as que rodeavam a bela camponesa. Aquela era a flor mais afortunada de todas; e estava radiante por isso. Quisera eu ser aquela flor, seguindo a doce donzela por onde quer que fosse. Não sendo isso possível, pelo menos me deleitaria em ser aquelas flores menos sortudas que eram pisadas como que sendo massageadas por aqueles afáveis pés descalços. Afortunadas flores!

terça-feira, 13 de junho de 2017

Maiada

A vaca maiada trevessô a istrada.
Eta vaca danada!
Vô pegá um maio e dá uma maiada
Na cacunda dessa ingastaiada.

Num vai não sinhô.
Agora cê me provocô.
Te tomo o maio e te dismaio.
Essa vaca é minha desde maio.
Cê pidiu míli conto e eu te maiei;
Míli conto e um arrêi.

Intônci me paga, mula véia.
Te cepo um trem na ideia.

Cepadas e maiadas!






quarta-feira, 19 de abril de 2017



Rio Doce

Rio doce
Doces torrentes
Nervuras que levam seiva
Seiva que nutre
Artérias que levam vida
Ao coração da mata
Da mata do Rio Doce
Da mata luxuriante

Águas que murmuram
O murmúrio da vida
O murmúrio dos peixes
O murmúrio das brancas garças
O grasnar dos roucos socós
O matraquear do martim-pescador
Matraca flecha
Flecha de índio esperto
Que fura a água e flecha peixes

Doce rio
Doce murmúrio
Doce lamúria
Lamúria de límpidas águas
Que banham florestas
Matas que abrigam a anta
E escondem a temida onça

Águas que formam lagos
Lagos de vida
Bancos de macrófitas
Folhas palmadas de ninfeias
Jangadas de jaçanã
Jaçanã de dedos longos
E grasnar engasgado
Esganado
Por entre as espetaculares flores
Flores de lótus

Aguapés à deriva
Palco de lavadeiras
Lavadeiras em preto e branco
Soltam asa e canto
Maestro regendo para o murmúrio das águas
Para a canção do rio
Para o gemido das torrentes

Torrentes que abrigam o dourado
A curimba, o pacumã
Peixes grandes, frias cobras
Que serpenteiam por entre as pedras
Como o Rio Doce serpenteia por entre os montes

domingo, 8 de janeiro de 2017



A Luz-da-Chapada

            Na região central de Minas Gerais existe uma lenda de que uma luz muito forte, conhecida como Luz-da-Chapada, costuma amedrontar as pessoas, aparecendo nos campos à noite e, às vezes, seguindo gente, carro, carroça, ou o que estiver passando (pouco seletiva). É claro, fui lá conferir. O compadre Paulo Couto me recebeu em seu sítio e, enquanto tomávamos café (daquele tirado da bosta do jacu), comíamos pão-de-queijo (não gosto muito, mas para não fazer desfeita...) e falávamos da vida dos outros (como é de praxe para qualquer mineiro), um resplendor invadiu o quintal e ofuscou nossa vista, deixando raios de forte luz entrar pela janela entreaberta.
O compadre, já com trauma da tal Luz-da-Chapada, se trancou no banheiro. Como bom cabra-macho que sou, não me amedronto por pouca coisa. Abri a porta, saí e andei de encontro à forte luz, que se movia em ziguezague pelo quintal. As galinhas se assustavam nos poleiros. Quando estava bem próximo, percebi que a tal luz provinha, na verdade, da lamparina de uma velha banguela, visivelmente alcoolizada, que andava cambaleante, aparentemente sem saber onde estava. Perguntei-lhe então: “Domaria, a senhora tá bêbada?”. Ela, com cara de cachaceira, me respondeu sorridente (com aquele sorriso sem dente): “Tô bêba nada; só tô mêi chapada”. Foi aí que eu entendi o significado de Luz-da-Chapada.


Taoca

Taoca parece incêndio. Quando passa, ouve-se o tilintar; não da vegetação ardendo em chamas, mas dos insetos em ardente desejo de se manterem vivos. Quando passa correição pela floresta, parece batalha de tempos remotos: ouve-se como o tinir das espadas dos soldados espartanos.
Taoca é inundação de várzea na estação da cheia. Tudo que tem vida e deseja mantê-la tenta fugir do folhiço, que logo será inundado; não pelo borbotão das águas, mas por cortantes mandíbulas. Insetos em desespero. Soldados fugidos da guerra, debandados pelo potente exército; exército de Alexandre, o Grande.
A horda de formigas atrai a atenção de aves famintas, de aves espertas, que querem capturar esses soldados fugitivos: presas fáceis. Acanati de cabeça pontuda segue taoca pela floresta, com movimentos de caxinguelê e estalar de porco queixada. Também o faz o olho-de-fogo, negro como noite de lua nova, de flamejantes olhos: olhos de fogo; vermelho vivo como o escarlate.
Taoca é morte ambulante. Taoca é vida itinerante.