domingo, 8 de janeiro de 2017



A Luz-da-Chapada

            Na região central de Minas Gerais existe uma lenda de que uma luz muito forte, conhecida como Luz-da-Chapada, costuma amedrontar as pessoas, aparecendo nos campos à noite e, às vezes, seguindo gente, carro, carroça, ou o que estiver passando (pouco seletiva). É claro, fui lá conferir. O compadre Paulo Couto me recebeu em seu sítio e, enquanto tomávamos café (daquele tirado da bosta do jacu), comíamos pão-de-queijo (não gosto muito, mas para não fazer desfeita...) e falávamos da vida dos outros (como é de praxe para qualquer mineiro), um resplendor invadiu o quintal e ofuscou nossa vista, deixando raios de forte luz entrar pela janela entreaberta.
O compadre, já com trauma da tal Luz-da-Chapada, se trancou no banheiro. Como bom cabra-macho que sou, não me amedronto por pouca coisa. Abri a porta, saí e andei de encontro à forte luz, que se movia em ziguezague pelo quintal. As galinhas se assustavam nos poleiros. Quando estava bem próximo, percebi que a tal luz provinha, na verdade, da lamparina de uma velha banguela, visivelmente alcoolizada, que andava cambaleante, aparentemente sem saber onde estava. Perguntei-lhe então: “Domaria, a senhora tá bêbada?”. Ela, com cara de cachaceira, me respondeu sorridente (com aquele sorriso sem dente): “Tô bêba nada; só tô mêi chapada”. Foi aí que eu entendi o significado de Luz-da-Chapada.


Taoca

Taoca parece incêndio. Quando passa, ouve-se o tilintar; não da vegetação ardendo em chamas, mas dos insetos em ardente desejo de se manterem vivos. Quando passa correição pela floresta, parece batalha de tempos remotos: ouve-se como o tinir das espadas dos soldados espartanos.
Taoca é inundação de várzea na estação da cheia. Tudo que tem vida e deseja mantê-la tenta fugir do folhiço, que logo será inundado; não pelo borbotão das águas, mas por cortantes mandíbulas. Insetos em desespero. Soldados fugidos da guerra, debandados pelo potente exército; exército de Alexandre, o Grande.
A horda de formigas atrai a atenção de aves famintas, de aves espertas, que querem capturar esses soldados fugitivos: presas fáceis. Acanati de cabeça pontuda segue taoca pela floresta, com movimentos de caxinguelê e estalar de porco queixada. Também o faz o olho-de-fogo, negro como noite de lua nova, de flamejantes olhos: olhos de fogo; vermelho vivo como o escarlate.
Taoca é morte ambulante. Taoca é vida itinerante.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016





Ruínas linguísticas

Não pretendo escrever utilizando verbetes incógnitos para tornar laboriosa e ímproba a compreensão; isso seria afrontar o bom senso com armas contundentes e déspotas. Aliás, o que seria de um escrito ilegível? Tornaria o alfabetizado analfabeto. Por isso uso vocabulário modesto, tangível e axiomático, acessível a todos os públicos. Por mais intransitivos que sejam os verbos, complemento-os. Por mais perifrásticos que sejam os períodos, torno-os ainda mais circunlóquios. Por mais abstratas que sejam minhas ideias, concretizo-as. Nada de obscurecer a essência do que é dito com a obumbração de estereotipia que protege textos acadêmicos como baluartes erguidos a pedras, à maneira de penedos e calhaus salvaguardando a orla marítima da bravura das matas interiores. Obstinação sórdida!
Almejo discorrer aqui acerca da restrição lexical que a última flor do Lácio vem sofrendo, mais febrilmente, nos últimos tempos. E que léxico vasto e ancho a nossa língua ostenta! Tão opíparo quanto úberes amojados de reses a ponto de partejar. Colossal em abundância como o é em salpicos a plumagem variegada de um polhastro pedrês.
Afinal, quem tem mais amplo vocabulário do que os capiaus? Pouco cognoscível para os citadinos, talvez, visto que esses últimos sofrem com mais frequência e pujança do mal lúbrico, por vezes convincente - para eles, não para mim -, de adaptar seu vocabulário a linguagens estereotipadas que buscam, em lugar de profusão e magnificência, a austeridade e a parcimônia da redundância semântica.
Ah, por onde andas, galhardíssima mesóclise? Por que abandonaste nossa construção sintática e te deixaste comutar por despojadas próclises, que não trazem nenhum sentido poético aos excertos modernos? Eras a posição mais egrégia e deslumbrante dentre todas as que um pronome pessoal átono do caso oblíquo podia ocupar. Modernidade! A maldita modernidade causando a derrocada e o depauperamento da linguagem textual. Dar-se-ia o caso de que voltarias a ensoberbecer nosso idioma alhures no tempo?
Recuso-me à adesão inconveniente e inaceitável a esse esfacelamento idiomático. Prefiro conservar meu cunho caipira a cambiar minha fala e escrita para algo menos feérico e mais malparecido, algo que eu alvitro ser torpe e abjeto. Deixo transparecer a primordialidade de se utilizar metáforas sempre e incessantemente. Metáforas são adagas afiadíssimas capazes de tocar qualquer leitor. Têm aspectos tão retos quanto cornos de agnos, encaracolados sobre si mesmos. Espira esplêndida!
Não que eu não goste de pronomes de tratamento - que, apesar de se referirem à segunda pessoa, conjugam-se em terceira -, mas “você” é reles, ordinário e nauseabundo. Deveria ele sentir a metanoia de nos subtrair a noção de conjugação em segunda pessoa; e ele não sente a mínima compunção de nos omitir a capacidade de discernir entre os pronomes possessivos “teu” e “seu”.
Prolixos textos acadêmicos que usam mais palavras do que substância! Na verdade, na sociedade em que vivemos, o dom de orador deve ser sabiamente albergado por todos para que, mesmo não se tendo o que dizer, tem-se o que dizer; mesmo não se dizendo nada, diz-se muita coisa; mesmo não se apresentando argumentos convincentes, convence-se; mesmo não se sendo um gênio, parece-o. Pro lixo tudo que é prolixo! Insensatez de escritores gauche!
Se for teu gáudio ouvir-me a utilizar essa linguagem trampolinada que usas, estejas certo de que não to darei. Folgo-me, em vez disso, com o vetusto e provecto linguajar dos antigos poetas. Aliás, pobres dos poetas que desejarem ter avultada e magnânima carreira em tempos tão difíceis linguisticamente. Parece qualquer blague, buscando espargir a pilhéria e a laracha, mas é a verdade incondicional e impertinente em que vivemos em tempos tão modernos: em lugar de ganho, perda; em lugar de locupletamento, retrocesso a ruínas.