terça-feira, 18 de outubro de 2016



As matas do Rio Doce                                                 

Sol no horizonte. Brilho rubro sobre as águas do Rio Doce. O jaó ainda enche os vales com sua grave lamúria. Os últimos passarinhos deixam as fruteiras e procuram um lugar de repouso para passar a noite que se aproxima. O macuco saúda os últimos raios de sol com seu metálico buzinar. A escuridão toma conta da floresta, tornando-a cada vez mais sinistra em sons e imperceptível em cores. O imenso tapete verde imerge na escuridão noturna. Chegou o momento das criaturas da noite soltarem seus coros amedrontadores.
Entre o pulsar do murucututu e o canto áspero do curiango, um excêntrico canto aflautado toma conta da escuridão da noite; canto que mais parece provir de alguma criatura lendária e misteriosa que os matutos acreditam existir em nossas sombrias florestas; um canto que parece se relacionar com o brilho prateado da lua cheia, que a essa hora já está alta no céu, deixando raios de luz penetrarem na mata através do intrincado dossel. Essa misteriosa criatura, que passara o dia imóvel e imperceptível na ponta de um galho e agora mostra seus enormes e conspícuos olhos amarelos, é o urutau, ave das mais estrambólicas que nossas insólitas matas e campos ainda escondem.
De repente, a trilha sonora dominada pelas aves é quebrada por um som que mete terror em qualquer alma viva: é o esturro da onça-pintada, que ainda sobrevive por essas paragens. O berro do urutau-gigante também ecoa ao longe e mostra ser quase tão amedrontador quanto o esturro do grande felino.
A irara se locomove furtivamente pela mata sombria como um espírito da floresta, intercalando a busca por alimento entre o solo e o alto das árvores. Apesar de algoz predador, tem predileção pela doçura do mel, enfrentando as ferozes e iracundas abelhas para subtrair-lhes o precioso alimento. Uma graciosa cuíca sobe tranquilamente por um débil galho. Em seu marsúpio, minúsculos filhotes se agarram e sugam o nutritivo leite da mãe. Ainda vai demorar tempos até que eles possam enfrentar os perigos noturnos sozinhos.
A jaguatirica escala a árvore onde está o poleiro do macuco. A súbita e estrepitosa fuga da ave em meio à escuridão noturna assusta o predador. Onde ele pousou, ninguém sabe; sua sobrevivência depende de a jaguatirica não o descobrir.
A noite já está no final e o brilho da lua se despede do esplendor do Cruzeiro do Sul. A aurora é anunciada pelo canto matinal da maria-já-é-dia. O macuco, assim como se despediu do sol, agora se despede da lua. O rio, que havia perdido o brilho rubro do sol poente para adquirir o prateado da lua que emergira, agora volta a ser rubro com os primeiros raios do sol nascente e serpenteia calmamente por entre as montanhas cobertas pelo manto verde da mata. A magnificência opalescente do amanhecer se estampa imponente no índigo lábaro.
A passarada já procura as fruteiras e, do alto de uma paineira emergente, os papagaios fazem sua algazarra, saudando o dia, que chega e transforma o misterioso mundo de sons da noite em um extraordinário mundo multicolorido. O belo e barulhento furriel encanta o observador com sua máscara negra que se sobressai em meio ao dourado intenso do restante da plumagem. O bico extremamente robusto e seu ruidoso trinado fazem dessa ave uma das mais espetaculares dessas ricas florestas.
Em uma frondosa e produtiva figueira, as aves disputam com os macacos os suculentos frutos. Os pássaros frugívoros chegam a bandos e se empanturram, aproveitando a abundância sazonal. O belo tucano, com bico negro como a noite e peito de um amarelo alaranjado acentuado, separado da barriga sangrenta por uma estreita faixa clara de tons também amarelos, chega e impõe seu domínio, subordinando as aves menores.
O corpulento e extraordinário pavó mostra sua beleza imbatível em luxuriantes exibições, onde os machos entoam seu coral quase infrassônico exibindo o ilustre babador escarlate, que desce do pescoço ao peito estufado. Nos estratos mais baixos, o tangará dançador, de menores proporções físicas, mas de beleza equiparável, também faz sua exibição em conjunto, na qual os coloridos machos realizam uma incrível e estonteante dança acompanhada por vocalizações não menos magníficas. A modesta fêmea observa e julga a apresentação.
Nos taboais, o assovia-cachorro faz seu espetacular display em casais, vocalizando e dançando tal uma ave do paraíso nas remotas florestas de Nova Guiné. Os corpos balançam como pêndulos invertidos e as caudas sacodem em um balé incrível. A notável área de pele desnuda na garganta é expandida, revelando um mirabolante ornamento de cor amarelo tão intenso quanto os estapafúrdios olhos.
Os bugios já se acordaram e enchem a mata com seu rugido gutural. Estalidos na floresta e o canto das aves em festa anunciam a passagem de uma correição de formigas, que coloca em pânico qualquer pequeno ser que habite a serrapilheira. O olho-de-fogo captura avidamente os insetos que fogem em desespero da horda de formigas. Seus olhos flamejantes se destacam em meio à túnica negra que lhe recobre todo o corpo. O reservado jacu-estalo ainda segue correições algures no sub-bosque dessas ricas matas; é um fantasma da floresta. Um tamborilado surdo e apressado desvia a atenção do observador: o pica-pau-rei está anunciando sua presença. O canto do pintadinho corta na diagonal a malha espaço-tempo como uma espada afiada.
Os diversos lagos de águas verdes como a esmeralda, que parecem incorporar a cor das árvores viçosas, entrecortam a floresta, criando os mais variados ambientes e abraçando uma extraordinária diversidade de vida. Em suas margens, a garça espreita os peixes desavisados, que se esgueiram por entre as plantas palustres. Sua brancura excede a beleza da alva. Uma borboleta amarela a incomoda, tentando roubar-lhe sais dos atentos e vívidos olhos.
A anhuma, pousada sobre um galho robusto que pende sobre a água, exibe o extravagante ornamento de sua fronte, que lhe dá a beleza e quiçá a força do unicórnio. Sobre as folhas flutuantes de lótus a jaçanã caminha utilizando seus dedos extremamente compridos para distribuir o peso do corpo no substrato instável.
O mergulhão-serpente, apenas com a cabeça e o longo pescoço à mostra sobre a água, assemelha-se a uma furtiva serpente por entre os aguapés. O corpo pesado permanece submerso enquanto a ave espia os arredores. Mergulha com tanta maestria e naturalidade que não se diferencia o mergulho submerso do nado superficial. É como se a água e o ar se matizassem e não houvesse divisão nítida entre eles. O bico afiado como adaga é arremessado como lança sobre o peixe, atravessando-o. Em um lesto movimento do pescoço, o bico é retirado das entranhas da presa, que é prontamente engolida.
O desabrochar das flores do mulungu enche a paisagem de cores, atraindo toda a sorte de aves, desde as coloridas saíras e os barulhentos guaxes até os iridescentes beija-flores, que furtam os raios solares e os convertem em brilhosos e extasiantes flashes de cores. O brilho do astro alimenta seu fulgor: são as aves do sol. Nessa paisagem onde predomina o vermelho intenso das flores, os vivazes periquitos verdes não passam despercebidos.
De cores pouco chamativas, mas voz de flauta bem lavrada em madeira de qualidade e assoprada por treinados lábios guaranis, o flautim encanta qualquer transeunte. Nos galhos altaneiros, acima do dossel da floresta, o pequeno anambezinho emite seu agudo canto paroxítono. Tufos lilases de penas sob as asas são mostrados em determinadas ocasiões, quebrando a monotonia de cores da modesta plumagem.
Nos sopés dos morros, próximo às barranqueiras dos riachos, os gregários cuitelões, pousados quase imóveis em um galho fino, seguem sincronizadamente com os olhos cada inseto transeunte como se estivessem sendo encantados por eles; o bico comprido à frente dos olhos descreve no ar cada movimento realizado pela potencial presa. Àquele que lhe parece mais apetitoso, apanha em um voo curto, preciso e acrobático. Nas bordas das matas mais úmidas, a iridescente ariramba, brilhando ao sol qual beija-flor, realiza o mesmo comportamento em caça solitária, mas nem por isso menos encantadora.
Sol a pino. A tranquilidade de um bando de macacos é interrompida por uma grande e assustadora sombra que cai sobre a mata. Gritos de alarme. O bando se espalha e procura refúgio nas partes mais baixas da vegetação. O gavião-pega-macaco está apenas de passagem. Ao longe, o saci continua soltando seu dissilábico canto. Com silenciosos passos, a cutia se aproveita dos frutos derrubados pelos macacos.
Na copa de uma arvoreta cujos galhos são bulidos pela brisa, sons que mais parecem vindos de um bando misto contendo diversas espécies são emitidos por um intrigante ser. O admirável coro é o canto mimético do gaturamo, uma criatura portadora de um dom inimaginável e inacreditável; uma avezinha que sabe falar com fluência a língua dos outros passarinhos; um ser garrido pelo brilho metálico que se forma na bela plumagem quando tocada pelo mais tênue raio de luz. A natureza lhe presenteou com a beleza e com o dom do canto.
Sobre a imensidão verde, os andorinhões realizam seu eterno voo como aves pelágicas sobre o azul infinito dos oceanos. Com intrigantes manobras, apanham o plâncton aéreo com a maestria de arenques filtrando as ricas águas dos mares temperados em períodos de abundância.
O urubu rei, com seu voo imponente, exibe do alto sua majestade. A pouca altura da copa das árvores, o urubu caçador segue calmamente os vales dos ribeiros em voo rasante à procura de seu alimento; qualquer odor de carne em putrefação é logo percebido e sua fonte é descoberta. Sobre as termais, o urubu rei, com sua aguçada visão, está atento aos movimentos do competidor e também tem a localização do alimento.
O vigor do sol vai se perdendo e deixando a mata novamente sombria. A anta desce o barranco do rio para beber e se banhar. Lá a onça pode estar à espreita. O canto melodioso do sabiá quebra a monotonia da tarde e a triste melancolia da juriti viaja livremente pelos grotões. A beleza inexpressível do surucuá se revela em um galho alto.
Capoeiras baixas e campos de capim verdejante: aqui é o lar da perdiz e dos bandos imensos de trocal. O veado-mateiro se oculta no capim alto. Sobre uma estaca perdida no meio do campo, o joão-bobo permanece imóvel e inconspícuo, sendo traído apenas pelo bico vermelho e o lento movimento pendular da cauda. O amarelo ouro do canário parece representar a riqueza de vida da região. As seriemas soltam suas estrondosas gargalhadas, um dos sons mais típicos dos campos de vegetação rasteira adornados com engenhosos e bem projetados cupinzeiros.
O cair da tarde se apressa. Morcegos já começam a voar e um falcão se aproveita para fazer a última refeição do dia. O canto agourento do acauã despede-se dos últimos raios de luz. O dueto do casal de saracuras se sobressai em vigor e em musicalidade aos outros sons crepusculares. Aproximando-se de um pântano, a cantoria dos sapos já se faz notória. O sapo ferreiro emite seu surpreendente canto percussivo, que se assemelha ao som de um martelo golpeando, enquanto a rã pimenta solta, de tempos em tempos, sua nota única. A corujinha orelhuda já começa a lançar seu canto ao lusco-fusco. Sol no horizonte. Brilho rubro sobre as águas do Rio Doce.

Nenhum comentário:

Postar um comentário