As matas do Rio Doce
Sol no horizonte.
Brilho rubro sobre as águas do Rio Doce. O jaó ainda enche os vales com sua
grave lamúria. Os últimos passarinhos deixam as fruteiras e procuram um lugar
de repouso para passar a noite que se aproxima. O macuco saúda os últimos raios
de sol com seu metálico buzinar. A escuridão toma conta da floresta, tornando-a
cada vez mais sinistra em sons e imperceptível em cores. O imenso tapete verde
imerge na escuridão noturna. Chegou o momento das criaturas da noite soltarem
seus coros amedrontadores.
Entre o pulsar do
murucututu e o canto áspero do curiango, um excêntrico canto aflautado toma
conta da escuridão da noite; canto que mais parece provir de alguma criatura
lendária e misteriosa que os matutos acreditam existir em nossas sombrias
florestas; um canto que parece se relacionar com o brilho prateado da lua cheia,
que a essa hora já está alta no céu, deixando raios de luz penetrarem na mata
através do intrincado dossel. Essa misteriosa criatura, que passara o dia
imóvel e imperceptível na ponta de um galho e agora mostra seus enormes e
conspícuos olhos amarelos, é o urutau, ave das mais estrambólicas que nossas insólitas
matas e campos ainda escondem.
De repente, a trilha
sonora dominada pelas aves é quebrada por um som que mete terror em qualquer
alma viva: é o esturro da onça-pintada, que ainda sobrevive por essas paragens.
O berro do urutau-gigante também ecoa ao longe e mostra ser quase tão
amedrontador quanto o esturro do grande felino.
A irara se locomove
furtivamente pela mata sombria como um espírito da floresta, intercalando a
busca por alimento entre o solo e o alto das árvores. Apesar de algoz predador,
tem predileção pela doçura do mel, enfrentando as ferozes e iracundas abelhas
para subtrair-lhes o precioso alimento. Uma graciosa cuíca sobe tranquilamente
por um débil galho. Em seu marsúpio, minúsculos filhotes se agarram e sugam o
nutritivo leite da mãe. Ainda vai demorar tempos até que eles possam enfrentar
os perigos noturnos sozinhos.
A jaguatirica escala
a árvore onde está o poleiro do macuco. A súbita e estrepitosa fuga da ave em
meio à escuridão noturna assusta o predador. Onde ele pousou, ninguém sabe; sua
sobrevivência depende de a jaguatirica não o descobrir.
A noite já está no
final e o brilho da lua se despede do esplendor do Cruzeiro do Sul. A aurora é
anunciada pelo canto matinal da maria-já-é-dia. O macuco, assim como se
despediu do sol, agora se despede da lua. O rio, que havia perdido o brilho
rubro do sol poente para adquirir o prateado da lua que emergira, agora volta a
ser rubro com os primeiros raios do sol nascente e serpenteia calmamente por
entre as montanhas cobertas pelo manto verde da mata. A magnificência
opalescente do amanhecer se estampa imponente no índigo lábaro.
A passarada já
procura as fruteiras e, do alto de uma paineira emergente, os papagaios fazem
sua algazarra, saudando o dia, que chega e transforma o misterioso mundo de
sons da noite em um extraordinário mundo multicolorido. O belo e barulhento furriel
encanta o observador com sua máscara negra que se sobressai em meio ao dourado
intenso do restante da plumagem. O bico extremamente robusto e seu ruidoso
trinado fazem dessa ave uma das mais espetaculares dessas ricas florestas.
Em uma frondosa e
produtiva figueira, as aves disputam com os macacos os suculentos frutos. Os pássaros
frugívoros chegam a bandos e se empanturram, aproveitando a abundância sazonal.
O belo tucano, com bico negro como a noite e peito de um amarelo alaranjado acentuado,
separado da barriga sangrenta por uma estreita faixa clara de tons também amarelos,
chega e impõe seu domínio, subordinando as aves menores.
O corpulento e
extraordinário pavó mostra sua beleza imbatível em luxuriantes exibições, onde
os machos entoam seu coral quase infrassônico exibindo o ilustre babador escarlate,
que desce do pescoço ao peito estufado. Nos estratos mais baixos, o tangará
dançador, de menores proporções físicas, mas de beleza equiparável, também faz
sua exibição em conjunto, na qual os coloridos machos realizam uma incrível e
estonteante dança acompanhada por vocalizações não menos magníficas. A modesta
fêmea observa e julga a apresentação.
Nos taboais, o
assovia-cachorro faz seu espetacular display em casais, vocalizando e dançando
tal uma ave do paraíso nas remotas florestas de Nova Guiné. Os corpos balançam
como pêndulos invertidos e as caudas sacodem em um balé incrível. A notável
área de pele desnuda na garganta é expandida, revelando um mirabolante
ornamento de cor amarelo tão intenso quanto os estapafúrdios olhos.
Os bugios já se
acordaram e enchem a mata com seu rugido gutural. Estalidos na floresta e o
canto das aves em festa anunciam a passagem de uma correição de formigas, que
coloca em pânico qualquer pequeno ser que habite a serrapilheira. O
olho-de-fogo captura avidamente os insetos que fogem em desespero da horda de
formigas. Seus olhos flamejantes se destacam em meio à túnica negra que lhe
recobre todo o corpo. O reservado jacu-estalo ainda segue correições algures no
sub-bosque dessas ricas matas; é um fantasma da floresta. Um tamborilado surdo
e apressado desvia a atenção do observador: o pica-pau-rei está anunciando sua
presença. O canto do pintadinho corta na diagonal a malha espaço-tempo como uma
espada afiada.
Os diversos lagos de
águas verdes como a esmeralda, que parecem incorporar a cor das árvores
viçosas, entrecortam a floresta, criando os mais variados ambientes e abraçando
uma extraordinária diversidade de vida. Em suas margens, a garça espreita os
peixes desavisados, que se esgueiram por entre as plantas palustres. Sua
brancura excede a beleza da alva. Uma borboleta amarela a incomoda, tentando
roubar-lhe sais dos atentos e vívidos olhos.
A anhuma, pousada
sobre um galho robusto que pende sobre a água, exibe o extravagante ornamento
de sua fronte, que lhe dá a beleza e quiçá a força do unicórnio. Sobre as
folhas flutuantes de lótus a jaçanã caminha utilizando seus dedos extremamente
compridos para distribuir o peso do corpo no substrato instável.
O mergulhão-serpente,
apenas com a cabeça e o longo pescoço à mostra sobre a água, assemelha-se a uma
furtiva serpente por entre os aguapés. O corpo pesado permanece submerso
enquanto a ave espia os arredores. Mergulha com tanta maestria e naturalidade
que não se diferencia o mergulho submerso do nado superficial. É como se a água
e o ar se matizassem e não houvesse divisão nítida entre eles. O bico afiado
como adaga é arremessado como lança sobre o peixe, atravessando-o. Em um lesto
movimento do pescoço, o bico é retirado das entranhas da presa, que é
prontamente engolida.
O desabrochar das
flores do mulungu enche a paisagem de cores, atraindo toda a sorte de aves,
desde as coloridas saíras e os barulhentos guaxes até os iridescentes beija-flores,
que furtam os raios solares e os convertem em brilhosos e extasiantes flashes de cores. O brilho do astro
alimenta seu fulgor: são as aves do sol. Nessa paisagem onde predomina o
vermelho intenso das flores, os vivazes periquitos verdes não passam
despercebidos.
De cores pouco
chamativas, mas voz de flauta bem lavrada em madeira de qualidade e assoprada
por treinados lábios guaranis, o flautim encanta qualquer transeunte. Nos
galhos altaneiros, acima do dossel da floresta, o pequeno anambezinho emite seu
agudo canto paroxítono. Tufos lilases de penas sob as asas são mostrados em determinadas
ocasiões, quebrando a monotonia de cores da modesta plumagem.
Nos sopés dos morros,
próximo às barranqueiras dos riachos, os gregários cuitelões, pousados quase
imóveis em um galho fino, seguem sincronizadamente com os olhos cada inseto
transeunte como se estivessem sendo encantados por eles; o bico comprido à
frente dos olhos descreve no ar cada movimento realizado pela potencial presa. Àquele
que lhe parece mais apetitoso, apanha em um voo curto, preciso e acrobático. Nas
bordas das matas mais úmidas, a iridescente ariramba, brilhando ao sol qual
beija-flor, realiza o mesmo comportamento em caça solitária, mas nem por isso
menos encantadora.
Sol a pino. A
tranquilidade de um bando de macacos é interrompida por uma grande e
assustadora sombra que cai sobre a mata. Gritos de alarme. O bando se espalha e
procura refúgio nas partes mais baixas da vegetação. O gavião-pega-macaco está
apenas de passagem. Ao longe, o saci continua soltando seu dissilábico canto.
Com silenciosos passos, a cutia se aproveita dos frutos derrubados pelos
macacos.
Na copa de uma
arvoreta cujos galhos são bulidos pela brisa, sons que mais parecem vindos de
um bando misto contendo diversas espécies são emitidos por um intrigante ser. O
admirável coro é o canto mimético do gaturamo, uma criatura portadora de um dom
inimaginável e inacreditável; uma avezinha que sabe falar com fluência a língua
dos outros passarinhos; um ser garrido pelo brilho metálico que se forma na
bela plumagem quando tocada pelo mais tênue raio de luz. A natureza lhe
presenteou com a beleza e com o dom do canto.
Sobre a imensidão
verde, os andorinhões realizam seu eterno voo como aves pelágicas sobre o azul
infinito dos oceanos. Com intrigantes manobras, apanham o plâncton aéreo com a
maestria de arenques filtrando as ricas águas dos mares temperados em períodos
de abundância.
O urubu rei, com seu
voo imponente, exibe do alto sua majestade. A pouca altura da copa das árvores,
o urubu caçador segue calmamente os vales dos ribeiros em voo rasante à procura
de seu alimento; qualquer odor de carne em putrefação é logo percebido e sua
fonte é descoberta. Sobre as termais, o urubu rei, com sua aguçada visão, está
atento aos movimentos do competidor e também tem a localização do alimento.
O vigor do sol vai se
perdendo e deixando a mata novamente sombria. A anta desce o barranco do rio
para beber e se banhar. Lá a onça pode estar à espreita. O canto melodioso do
sabiá quebra a monotonia da tarde e a triste melancolia da juriti viaja livremente
pelos grotões. A beleza inexpressível do surucuá se revela em um galho alto.
Capoeiras baixas e
campos de capim verdejante: aqui é o lar da perdiz e dos bandos imensos de
trocal. O veado-mateiro se oculta no capim alto. Sobre uma estaca perdida no
meio do campo, o joão-bobo permanece imóvel e inconspícuo, sendo traído apenas
pelo bico vermelho e o lento movimento pendular da cauda. O amarelo ouro do
canário parece representar a riqueza de vida da região. As seriemas soltam suas
estrondosas gargalhadas, um dos sons mais típicos dos campos de vegetação
rasteira adornados com engenhosos e bem projetados cupinzeiros.
O cair da tarde se
apressa. Morcegos já começam a voar e um falcão se aproveita para fazer a
última refeição do dia. O canto agourento do acauã despede-se dos últimos raios
de luz. O dueto do casal de saracuras se sobressai em vigor e em musicalidade
aos outros sons crepusculares. Aproximando-se de um pântano, a cantoria dos
sapos já se faz notória. O sapo ferreiro emite seu surpreendente canto percussivo,
que se assemelha ao som de um martelo golpeando, enquanto a rã pimenta solta,
de tempos em tempos, sua nota única. A corujinha orelhuda já começa a lançar
seu canto ao lusco-fusco. Sol no horizonte. Brilho rubro sobre as águas do Rio
Doce.
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