Incêndio na floresta
Era uma tarde como
qualquer outra, com o mesmo sol tórrido de verão que assola tudo que não está à
sombra nas regiões equatoriais. A bicharada cumpria suas tarefas cotidianas,
como a busca incessante por alimento. Vivia-se para manter-se vivo, nada mais.
Um dia sucedia outro dia e um ano sucedia outro ano, sem um influenciar nos
acontecimentos do outro. No presente não se recordava do passado e o futuro não
influenciava as ações do presente. A natureza vivia em perfeita harmonia. O
altruísmo era um sentimento compartilhado por todos. Quando faltava algo para
alguém, bastava pedir ao vizinho: “Tem milho aí?”. Sim, os animais falavam.
Nesse curso sereno, a
vida seguia sem muitos problemas, até que um dia tudo mudaria. Um simples e
pontual acontecimento para um mundo tão estável, um grande passo para o eterno
caos; uma mudança inestimável na vida daqueles animais tão acostumados ao mundo
como ele era. E a raiz de tudo: a população humana começava a prosperar e, com
ela, a destruição e o esgotamento dos recursos. Ações tipicamente humanas
começavam a se tornar comuns e, dentre elas, uma mudou o rumo de nossa
narrativa.
Uma faísca de fogo,
alimentada pelo sol escaldante, começava a se alastrar e a consumir o mato
seco. O fogo é fraco de primeiro, mas pega força; pega força muito facilmente,
muito rapidamente. De apenas mato seco, ele passa a queimar qualquer coisa que
cruze seu caminho ou fique estático no meio dele. A destruição é visível por
todos os lados e o céu se escurece com a negra fumaça. E essa foi a realidade daquele
momento. Um momento no presente que, pela primeira vez na história daquele
remoto mundo, influenciaria todo o futuro. Um pandemônio tomava conta daquela
paisagem outrora tão pacata. Tudo saía do lugar em desespero. A bicharada
corria feito louca para tentar se salvar. A passarada, observadora como é,
acompanhava tudo de perto, sem saber qual seria o desfecho daquela barafunda.
O primeiro que viu o gatilho da tragédia ser puxado e deu o alarme foi o
bem-te-vi: “Vi, bem te vi, bem, bem te vi”. O humano, amedrontado por ter sido
descoberto, saiu de fininho, tentando passar despercebido aos olhos do restante
da passarada. Mas os bichos são muito espertos para serem enganados. Tão logo a
primeira ave deu o alarme, toda a passarada já estava avisada. Maria-te-viu
ainda advertiu e zombou: “Te viu, te viu”. Foi aí que o japacanim, soldado bem
renomado, chegou com a sirene ligada, acompanhado do sargento e da
polícia-inglesa: “Uíuíuíuíuíuíuíuí”. Então, completamente aterrorizado, o
humano fugiu espavorido e quase morreu do coração quando o inhambu saiu com
estrondo em voo desesperado, o que provocou uma crise de riso na risadinha.
Guaracava-cinzenta chegou a perder o fôlego.
Telepáticos e psicopatas urubus
desciam em voo ruidoso para sondar as oportunidades. Queriam que o incêndio
durasse muito, embora não pudessem desejá-lo verbalmente. Apenas se comunicavam
telepaticamente com toda a sorte de rapina que os céus podiam enviar para
aquele mórbido ambiente. Essas aves más (dependendo do ponto de vista)
enxergavam tudo diferente das outras espécies: onde todos os outros viam caos e
destruição, elas viam uma grande churrasqueira ardendo e suculentos pedaços de
picanha sendo assados. Banquete abundante para abundantes e aterrorizantes
silhuetas, que chegavam dançando de roda. Vinham vestidos com negras túnicas da
morte. Tão negras quanto as aves, suas sombras deslizavam por sobre a paisagem,
tornando o clima ainda mais fúnebre.
Foi nesse acontecimento que surgiu o
peru, ave negra e pomposa – até então esse magnífico modelo de ave ainda não
tinha passado nem na mente do mais renomado contador de histórias. Devido ao
grande trânsito de carniceiros no céu e à falta de uma tecnologia apurada para
estabelecer rotas, aconteceram vários acidentes aéreos que causaram ferimentos
e fraturas em diversos indivíduos. Alguns, ao quebrar as asas e não terem
recurso médico para curar as fraturas, não podiam mais voar e passaram a dançar
de roda no chão. Afinal, a única diferença mais perceptível entre urubu e peru
é essa: urubu dança de roda no ar, peru dança de roda no chão.
Os maiores rapinantes ironicamente
salvavam filhotinhos indefesos e levavam para o conforto do ninho, a fim de
jantarem juntos. Eram os salva-vidas da ocasião; bem preparados para o serviço,
diga-se de passagem. Alguns, mais piedosos, chegaram mesmo a se especializar em
alvos mais lerdos, como as preguiças.
Claro que o bombeiro tinha que ser acionado. Esse era o curiango que, por
preguiça intrínseca, apenas disse sonolento: “Amanhã eu vou, amanhã eu vou”. O
urutau ainda perguntou preocupado: “Foi, foi, foi, foi, foi?”. O curiango só
repetiu: “Amanhã eu vou”. Repentinamente e milagrosamente, o céu se escureceu
e, após algum tempo, a chuva caiu leve, depois forte e, finalmente, o fogo estava
extinto. Provavelmente o tietê-de-coroa e o pararu-espelho foram extintos
juntos. Foi aí que a rolinha-fogo-apagou começou a comemorar: Fogo pagô! Fogo
pagô! (sim, era mineira).
Abra parênteses. O tietê-de-coroa
não tem esse nome por causa do Rio Tietê. Ele era tão feio e com cara de velho
que todo mundo o chamava de tio ET. Você já viu um tietê com as penas
escovadinhas? Pois é. Ele tem tanta cara de velho que a gente só acha o danado
no museu. Feche parênteses.
Como em toda boa família sempre existe um traidor, nessa história não foi
diferente. No caso das aves, foi a pomba-bota-fogo que torceu pelo time dos
urubus. Essa, amiga dos humanos, incentivou o homem a colocar fogo na mata
novamente: “Bota fogo! Bota fogo!”. Bem, não se sabe ao certo o que passara em
sua mente de passarinho (se é que pomba pode ser chamada de passarinho), mas
ela disse isso. É claro que isso irritou grandemente a rolinha-fogo-apagou e
causou muita intriga entre as duas parentas. Ficaram se respondendo e disputando:
uma dando a boa nova e a outra implicando com incentivos ao humano. Essa briga
toda levou a rolinha-fogo-apagou a abandonar a vida na mata e se aventurar em
campo aberto. Seriema, quando soube da história, soltou altas gargalhadas, e
até hoje é possível ouvir as gargalhadas dela nos campos.
Caos, pilhéria, inimizades, tudo causado por um
aparentemente simples acontecimento, provocado pelos humanos. Mas uma
revelação, a mais importante e intrigante delas, está por vir: a fumaça tóxica
afetou os animais, fazendo-os perder a fala. Hoje em dia, ouve-se os pássaros
por toda parte, mas só se ouve falar aqueles que já tinham decorado a ladainha.
Os outros vivem a proferir estrofes sem sentido por aí. Esse foi o fim
dramático da comunicação verbal entre os animais e também entre animais e
humanos, além do início de várias intrigas que hoje mantêm muitos animais
apartados: uns na mata, outros no campo. Aqui está a história das coisas; a
história do mundo; a história de tudo. Uma história reveladora que só agora foi
contada e que mudará o rumo do pensamento das pessoas. A verdade sempre é mais
simples do que se imagina. A ciência nos mostra apenas uma versão enfadonha,
incômoda e inconveniente das coisas esdrúxulas que acontecem.
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