Escrever é expor os sentimentos d'alma; é derramar no papel aquilo que os olhos apenas destilam em seu profundo silêncio indecifrável e ninguém é capaz de captar. Escrever é como brincar com a sintaxe e o léxico tendo prazer em fazê-lo. Ser poeta é ser próprio; é apenas transcrever aquilo que se é ou se pensa. A obra identifica o escritor como o fruto identifica a árvore. Eu escrevo não como uma obrigação, mas como uma realização; como se pudesse realizar o meu eu com o fluxo das palavras.
quarta-feira, 6 de setembro de 2017
segunda-feira, 28 de agosto de 2017
Ideias desconexas
Na várzea há lama, caro leitor, e essa lama abriga vermes
invisíveis. Vê-me um verme, senhora, pede o cachaceiro no balcão do bar. Ou o
maçarico no banco de areia úmida. O sereno rega flores e vultos são formas da
escuridão. Não faço o que quero, mas quero o que faço, diz o sábio. E o néscio
zomba. Asas são para pássaros e trombas para elefantes. Dias belos nascem
cândidos e morrem rubros. À noite, só a alvura do luar e o brilho ávido e
dançante das estrelas pintam o negro lábaro. O dia se resume a cores.
Não vejo isso como uma mescla de histórias de sentidos
diversos, mas como pensamentos parturientes sendo dispensados e dispersados
como vesículas cheias do complexo golgiense. Contextos com textos bem
contextualizados e testamentos bem testados contestando na testa do leitor.
Escrevo e me maravilho com o potencial volátil das ideias,
que deixam constantemente de ser ideias para se incorporarem ao mundo físico,
perdendo, claro, um pouco do conteúdo existente no mundo das ideias. Mas, de
que vale conteúdo? Contemos simplesmente um conto que conte algo incontável. E
contestemos o que é incontestável e litiguemos o que é litigável nos escritos
não cômicos que para nada servem. Pensamentos voam como belas gaivotas. O
crepúsculo é o limite, porque prende nosso pensamento e nos faz escrever
poesias crepusculares, quando a alva sobe alvejante sobre o negro petulante.
Sinto ideias indo e vindo, confusas e perdidas, pouco antes
de encontrarem um rumo, que pode ser um buraco de minhoca no infinito universo.
Elas se trombam e se entrelaçam como peixes-bruxa nos abissais dos oceanos. Às
vezes se contorcem sobre si mesmas. No final, apontam como setas atiradas por
habilidosas mãos guerreiras e cravam-se em uma verdade incondicional e mortal,
como que vociferando para o futuro e além da infinitude cósmica.
Às vezes se tornam ideias desfavoráveis à compreensão do
contexto literário de obras que poderiam alcançar reputação magnânima, mas,
dessarte, parecem perder o sentido literário. Mas, será o favorável tão importante?
Para começar, o favor pode ser algo desfavorável, apesar de sermos
frequentemente favorecidos por ele. De que vale ser favorável pois? De que vale
ser um átomo no espaço se não podemos sê-lo fora dele? De que vale a existência se o
espaço não tem fim nem forma? Somos amorfos, inodoros, incolores e insípidos.
Somos seres magníficos, mas nada que se compare às substâncias das quais somos
formados. No final, nos tornamos em nada. Que coisa esplendorosa!
Talvez eu seja culpado da confusão mental do leitor. E tomo
a culpa como qualquer alavanca para erguer o planeta, de forma que a água
transborde através das bordas inexistentes. Durante a chuva, acha-se abrigo sob as árvores. Após a estiagem,
ali é o único lugar onde a chuva permanece.
quarta-feira, 23 de agosto de 2017
segunda-feira, 19 de junho de 2017
Andorinhões, aves de extremos
Um bando errático de
pássaros anegrados maculam e riscam o azul penetrante do lábaro de verão. São
os mais habilidosos voadores que os céus são orgulhosos de apresentar. Têm no
ar o seu leito e no vento a sua vereda. Seu rosto está constantemente
arrefecido pela brisa fresca das alturas e suas asas cortam a atmosfera como
lâminas afiadas, sustentando-os acima dos outeiros com a leveza de algodão e a
aerodinâmica de mísseis.
Em sua eterna rota, rabiscando
com destreza a abóbada celeste, esses pássaros capturam constantemente o
plâncton aéreo, com a maestria de cardumes de arenques nas aparatosas águas de
branda temperatura dos mares temperados. Comem animalejos diversos que viajam
nas asas do vento, como insetos alados e mesmo pequenas aranhas, incríveis
viajantes de paraquedas.
Algumas espécies
realizam migrações intercontinentais, cruzando a bruma do mar alto e voando dia
e noite sem parar. Essas avezinhas não precisam de descanso. Podem voar até
duas estações sem pousar. Dormem deitados ao vento, sendo acariciados pelos
tufões das tempestades. Quando o céu se enegrece e pesadas nuvens descem
ameaçadoramente, liberando energia, luz e ruído, lá estão as aves do temporal,
deleitando-se com o mau tempo e furando os pés de vento prazerosamente.
São aves de extremos.
Têm prazer nas adversidades. Não só as águas da chuva lhes trazem regozijo. Por
trás do véu das cascatas, dependurados em cachos nos rochedos verticais
molhados constantemente pelo eterno sereno, lá estão eles, com plumagem
cinzenta, de aparência grotesca e obsoleta. No crepúsculo, vê-se o voo
acrobático e magistral dos enormes bandos contra o rubor do sol poente,
seguindo a melodia do turbilhão das cataratas. Cortam com aventuroso adejo a
cortina das perigosas cachoeiras como se apenas atravessassem os umbrais de
suas confortáveis moradas. Os pés são capazes de se empoleirar nas pedras
verticais e incapazes de fazê-lo em galhos finos e fios como os outros pássaros.
São mesmo aves insólitas.
sexta-feira, 16 de junho de 2017
Flor afortunada
Apenas passeava pelos campos
floridos que sumiam de vista no horizonte, chegando até onde, paulatinamente, o verde salpicado das mais variadas cores se encontrava com o azul
celeste, que àquele momento estava imaculado e com quase perfeita uniformidade.
Apenas tons esmaecidos de lilás se formavam onde os olhos já não podiam
distinguir bem as figuras; e um aro mais claro se fazia em volta do sol, que
parecia afastar aquele azul, talvez por inveja. Era manhã, mas o sol já
brilhava alto e já carregara o frio e a bruma.
A valsa dos
galhardíssimos ramalhetes de flores bulidos pela leve brisa confundia e
hipnotizava o olhar, estorvando as percepções de cores: aquilo tudo parecia uma
mescla de tons, como num desvario dos sentidos. Sentei-me em uma pedra que se
destoava da paisagem para observar aquele espetáculo estonteante sem sentir
vertigens.
Suave
sinfonia formada pelo canto dos sabiás e o murmúrio de um riacho que
serpenteava por entre as pedras polidas era carregada no vento como melodia melíflua
e agora roubava-me, a seu bel-prazer, o sentido de audição. Estavam
afinadíssimos e se expressavam conjuntamente como uma orquestra: o som de um
preenchia as pausas do outro.
Uma voz
tênue e aprazível entrou no ambiente sonoro como se a composição chegasse ao
coro. Só distingui bem a origem do som quando, ao longe, vi uma bela figura que,
sem perceber minha presença, colhia flores com um cesto pendendo-se do braço e cantarolava alegremente.
As flores pareciam se curvar e reunir em volta da orla daquele longo e simples vestido.
Aquela
figura se desavia completamente daquela paisagem, apesar de ter a formosura das
flores que compunham boa parte do que os olhos podiam apalpar em seu vislumbre.
Tal discrepância me fez recuperar os sentidos que há muito já não me faziam
perceber o ambiente em volta com clareza. Escondi-me para não comprometer as
atividades da moça.
A paisagem
que agora estava diante de mim se assemelhava mais ao crepúsculo assistido das
lindas praias tropicais. Todo o azul do mar e do céu, que vistos dessa
perspectiva se mesclam formando um único azul, pareciam estar condensados
naquele par de olhos, que se mostravam desconfiados como os das gazelas. Faltavam
a eles as ondas dóceis e serenas do mar calmo. Mas essas estavam nas lindas
mechas que lhe desciam pelo rosto, delimitando os desenhos mais singelos que já
havia visto, passavam pelos ombros e varriam os ramos mais altos.
O
enrubescer do sol poente estava sobre seus pômulos inocentes e o doirado da
espuma de arrebentação formava-se em seus loiros cabelos. Então me chamou a
atenção uma flor vermelha que ornava as mechas cor d’oiro e se mostrava maior e
mais esplendorosa que todas as que rodeavam a bela camponesa. Aquela era a flor
mais afortunada de todas; e estava radiante por isso. Quisera eu ser aquela
flor, seguindo a doce donzela por onde quer que fosse. Não sendo isso possível,
pelo menos me deleitaria em ser aquelas flores menos sortudas que eram pisadas
como que sendo massageadas por aqueles afáveis pés descalços. Afortunadas flores!terça-feira, 13 de junho de 2017
Maiada
A vaca maiada trevessô a istrada.
Eta vaca danada!
Vô pegá um maio e dá uma maiada
Na cacunda dessa ingastaiada.
Num vai não sinhô.
Agora cê me provocô.
Te tomo o maio e te dismaio.
Essa vaca é minha desde maio.
Cê pidiu míli conto e eu te maiei;
Míli conto e um arrêi.
Intônci me paga, mula véia.
Te cepo um trem na ideia.
Cepadas e maiadas!
quarta-feira, 19 de abril de 2017
Rio
Doce
Rio
doce
Doces
torrentes
Nervuras
que levam seiva
Seiva
que nutre
Artérias
que levam vida
Ao
coração da mata
Da
mata do Rio Doce
Da
mata luxuriante
Águas
que murmuram
O
murmúrio da vida
O
murmúrio dos peixes
O
murmúrio das brancas garças
O
grasnar dos roucos socós
O
matraquear do martim-pescador
Matraca
flecha
Flecha
de índio esperto
Que
fura a água e flecha peixes
Doce
rio
Doce
murmúrio
Doce
lamúria
Lamúria
de límpidas águas
Que
banham florestas
Matas
que abrigam a anta
E
escondem a temida onça
Águas
que formam lagos
Lagos
de vida
Bancos
de macrófitas
Folhas
palmadas de ninfeias
Jangadas
de jaçanã
Jaçanã
de dedos longos
E
grasnar engasgado
Esganado
Por
entre as espetaculares flores
Flores
de lótus
Aguapés
à deriva
Palco
de lavadeiras
Lavadeiras
em preto e branco
Soltam
asa e canto
Maestro
regendo para o murmúrio das águas
Para
a canção do rio
Para
o gemido das torrentes
Torrentes
que abrigam o dourado
A
curimba, o pacumã
Peixes
grandes, frias cobras
Que
serpenteiam por entre as pedras
Como
o Rio Doce serpenteia por entre os montes
domingo, 8 de janeiro de 2017
A
Luz-da-Chapada
Na região central de Minas Gerais existe uma lenda de que uma luz muito forte,
conhecida como Luz-da-Chapada, costuma amedrontar as pessoas, aparecendo nos campos
à noite e, às vezes, seguindo gente, carro, carroça, ou o que estiver passando
(pouco seletiva). É claro, fui lá conferir. O compadre Paulo Couto me recebeu
em seu sítio e, enquanto tomávamos café (daquele tirado da bosta do jacu),
comíamos pão-de-queijo (não gosto muito, mas para não fazer desfeita...) e
falávamos da vida dos outros (como é de praxe para qualquer mineiro), um
resplendor invadiu o quintal e ofuscou nossa vista, deixando raios de forte luz
entrar pela janela entreaberta.
O compadre, já
com trauma da tal Luz-da-Chapada, se trancou no banheiro. Como bom cabra-macho
que sou, não me amedronto por pouca coisa. Abri a porta, saí e andei de
encontro à forte luz, que se movia em ziguezague pelo quintal. As galinhas se
assustavam nos poleiros. Quando estava bem próximo, percebi que a tal luz
provinha, na verdade, da lamparina de uma velha banguela, visivelmente
alcoolizada, que andava cambaleante, aparentemente sem saber onde estava.
Perguntei-lhe então: “Domaria, a senhora tá bêbada?”. Ela, com cara de
cachaceira, me respondeu sorridente (com aquele sorriso sem dente): “Tô bêba
nada; só tô mêi chapada”. Foi aí que eu entendi o significado de
Luz-da-Chapada.
Taoca
Taoca parece incêndio. Quando passa, ouve-se o
tilintar; não da vegetação ardendo em chamas, mas dos insetos em ardente desejo
de se manterem vivos. Quando passa correição pela floresta, parece batalha de
tempos remotos: ouve-se como o tinir das espadas dos soldados espartanos.
Taoca é inundação de várzea na estação da cheia. Tudo
que tem vida e deseja mantê-la tenta fugir do folhiço, que logo será inundado;
não pelo borbotão das águas, mas por cortantes mandíbulas. Insetos em desespero.
Soldados fugidos da guerra, debandados pelo potente exército; exército de
Alexandre, o Grande.
A horda de formigas atrai a atenção de aves
famintas, de aves espertas, que querem capturar esses soldados fugitivos: presas
fáceis. Acanati de cabeça pontuda segue taoca pela floresta, com movimentos de
caxinguelê e estalar de porco queixada. Também o faz o olho-de-fogo, negro como
noite de lua nova, de flamejantes olhos: olhos de fogo; vermelho vivo como o
escarlate.
Taoca é morte ambulante. Taoca é vida itinerante.
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